“Interessante nas festas do
Cônego Adolfo era a grande alegria de pais e crianças. Numa de suas mais
movimentadas festas, feitas em frente ao antigo mercado, lá pelos idos de 1931,
consegui uma grande proeza, até hoje lembrada com a mesma emoção daquela tarde.
Na pracinha fronteira ao mercado estava armada a quermesse da criançada. Eram
brinquedos em profusão e divertimentos de todo jeito. Corrida de sacos,
cabra-cega, quebra-pote, tudo muito divertido e excitante. O melhor da festa,
porém, que crianças e adultos esperavam com ansiedade era o pau de sebo. Lá
estava ele, no centro da festa, alto e tremendamente liso. Fora escolhido com
capricho na mata da represa. A malícia humana e a habilidade haviam preparado o
obstáculo de modo a que fosse difícil ou mesmo impossível atingir o seu topo,
onde um tentador envelope escondia a tentação de uma nota de valor
desconhecido.
Terminados
os demais brinquedos, deu-se início à escalada no pau de sebo. Era de ver a
fisionomia travessamente risonha do Cônego Adolfo. O riso estourava em todos os
lábios, diante das fracassadas tentativas de todos os garotos. Alguns mais
felizes, que passavam do meio, recebiam palavras de estímulo. Formava-se a
torcida, incentivando os braços e as pernas do garoto, que se agarrava, que se
distendia, forcejava, impulsionava o corpo ... Era um palmo para cima e um
metro para baixo ... Alguns, cansados do esforço, desciam direto, ante as vaias
e lamentações da assistência. O jogo ia adiantado e cada vez mais excitante.
Até aquela altura, porém, só as mães e lavadeiras é que estavam ganhando
trabalho, se é que aquelas roupas em mísero estado ainda poderiam ser
aproveitadas. Mas tudo era festa e isso não contava.
Entre
os concorrentes, também eu estava cobiçando a vitória e a cédula. Tentei duas
vezes, estudando o terreno. Alguém, que não consigo lembrar agora, sussurrou-me
um segredo. Uma receita infalível, que sempre há receitas para todas as
dificuldades alheias. Só haveria um meio de subir: era encher os bolsos de breu
e areia e ir passando na superfície polida do pau de sebo. Seria tiro e queda
... Aceitei a sugestão e dirigi-me ao negócio do Joãozinho Megale, onde cavei
com Lauro um pouco de breu. Areia estava na rua mesmo. Fiz a mistura e enchi o bolso.
Contemplei a nota desafiadora e vi o quanto faltava para ser explorado. Havia
cerca de dois metros ainda intatos ... Ninguém chegara até ali ... Pouco mais
da metade era fácil subir. Quase todos os concorrentes já haviam limpado a
mistura escorregadia que tornava ingrata a missão de subir.
Assim
armado, enchi-me de coragem, de brio e de breu ... Iniciei a escalada entre os
gritos de encorajamento da torcida. Cheguei ao meio; ganhei mais um metro, sem
dificuldade. Parei para respirar e para encher a mão esquerda de breu e areia.
Depois a direita. Agarrei-me com vontade ao pau de sebo. Esfreguei a mistura
áspera e senti uma firmeza fora do comum. Dei um arranco espetacular, em zona
virgem, qual um triunfador ... A assistência delirava. Pouco mais de um metro
separava-me da vitória final. Outra manobra semelhante. Mas desta vez o avanço
foi quase nulo. Tive que recuar um pouco, pois os pés também haviam encontrado
superfície lisa e não explorada. Na volta, despejei minha mistura milagrosa em
lugares estratégicos, para dar apoio aos pés. Foi um santo remédio. Mais um
impulso e tocaria na nota ... No chão fervia o povo em algazarra. Quem mais
torcia era o Cônego Adolfo. Era um de seus coroinhas preferidos que estava
ganhando a difícil parada e ele vibrava. Enquanto descansava, eu ia recolhendo
os conselhos e as palavras de encorajamento. Afinal, com as mãos cheias de breu
e areia, fiz a arrancada decisiva. Foi um esforço tremendo. A ponta fina
vacilava sob meu peso, duplicado com os movimentos para subir. Arranquei
corajosamente, dando tudo. Quando olho para cima, levado pelos gritos do povo,
percebo que posso alcançar com as mãos o cobiçado envelope ... Aí é que foi o
difícil. Qualquer movimento poderia levar-me de volta ao chão, pois minha
trincheira não tinha segurança nenhuma. Largar uma das mãos poderia ser a
descida vertiginosa. Mas tinha que arriscar. Arrisquei e ganhei. Sob uma
trovoada de aplausos, arranquei o envelope e precipitei-me para o chão. Aliás,
larguei-me apenas, porque, se para baixo todo santo ajuda, naquela situação o
provérbio era terrivelmente verdadeiro.
Mas o
melhor da festa estava dentro do envelope. Embora sendo 1931, esperava uma
pelega de 20 ... Mas o que encontrei, esfriou-me o entusiasmo: além de ter de
enfrentar a braveza proverbial de Mamãe, pela roupa estragada, levava comigo
apenas uma nota de dois mil réis ...
Todavia,
quando hoje me lembro disso, vejo que valeu a pena. Com vinte mil réis, eu
teria comprado um par de sapatos, que teriam durado uns dois anos, mas dos
quais hoje nem lembrança teria. Dinheiro, até uma certa quantia, pouca
diferença faz na vida da gente. O que faz diferença é triunfar no objetivo. O
que nos dá importância íntima e nos torna grandes diante de nós mesmos, é
vencer. Conseguir o prêmio nem sempre é possível. Na vida terrena é muito comum
falhar o prognóstico. A previsão marcou mil, a colheita deu apenas cem. Isso é
todo dia. Qualquer cabeça enfeitada de cabelos brancos nos vai dizer que assim
é. Não foi em vão que o povo consagrou tantos provérbios importantes: O homem
põe e Deus dispõe - Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga - O
pouco com Deus é muito, o muito sem Deus é nada. São palavras de sabedoria, que
comprovam a fraqueza dos objetivos terrenos. Só o que ninguém pode destruir é o
prazer de vencer, é a tranqüilidade de havermos lutado com todas as energias.
Isso é nosso, é pessoal, subjetivo, inalienável. Aqui dentro de nós estende-se
um campo só nosso.
Dentro
da trincheira de nossa personalidade, somos absolutos. Quando aos outros
parecemos derrotados, estamos vitoriosos dentro de nosso “eu”. Isso é mais
importante do que o triunfo exterior, que, não raro, nos rouba a paz do
coração.”
*Crônica de
Alberto Péres, membro da tradicional família Péres, meu professor de português
na adolescência, mestre universitário e advogado. É bordamatense atualmente
residente no nordeste do Brasil..
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