A cena foi simples. Ia eu
passando de carro pela Lagoa quando vi na calçada uma moça esperando o ônibus
com seu jeans e bolsa a tiracolo. Nada demais numa moça esperando o ônibus. Mas
eis que passou um caminhão de som tocando uma lambada. Aí aconteceu. Aconteceu
uma coisa quase imperceptível, mas aconteceu: os quadris da moça começaram a se
mexer num ritmo aliciante. Já não era a mesma criatura antes estática,
solitária, esperando o ônibus na calçada. Ela havia se coberto de graça, algo
nela se incendiara.
A fotógrafa veio fazer umas
fotos. Estava com o pescoço envolto num pano, pois tinha torcicolo. E eu ali
posando meio frio, fingindo naturalidade, e ela cautelosa com seu pescoço meio
duro, tirando uma foto aqui, outra ali, quase burocraticamente. De repente ela
descobriu um ângulo e pronto: se incendiou profissionalmente, jogou-se no chão,
clic daqui, clic dali, vira para cá, vira para lá, este ângulo, aquele, enfim,
desabrochou, o pescoço já não doía. Ela havia detonado em si o que mais
profundamente ela era.
Estamos numa festa. Aquele
bate-papo no meio daquelas comidinhas e bebidinhas. Mas de repente alguém
insiste para que outro toque violão. Aparentemente a contragosto ele pega o
instrumento. E começa a dedilhar. Pronto, virou outra pessoa. Manifestou-se.
Elevou-se acima dos demais, está além da banalidade de cada um. Achou o seu
lugar em si mesmo.
Assim também ocorre quando
vemos no palco o cantor dar seus agudos invejáveis, o bailarino dar seus saltos
ou o atleta no campo disparar seus músculos e fazer aquilo que só ele pode
fazer melhor que todos nós. Isto é o que ocorre quando o instrumentista pega o
sax e sexualiza todo o ambiente com seu som cavernoso e erótico. Isto é o que
se dá até quando um conferencista ou um professor entreabre o seu discurso e
põe-se como uma sereia a seduzir a platéia, como um maestro seduz todo o
teatro.
Há um momento de sedução
típico de cada um. Quando o indivíduo está assentado no que lhe é mais próprio
e natural. E isto encanta.
Claro, esses são exemplos
até esperados. Mas há outros modos de o corpo de uma pessoa embandeirar-se como
se tivesse achado o seu jeito único e melhor de ser. Digo, o corpo e a alma.
Mas nem todos podemos ser
tão espetaculares. Nem por isso o pequeno acontecimento é menos comovente.
De que estou falando? De
algo simples e igualmente comovente. Por exemplo: o jardineiro que ao ser
jardineiro é jardineiro como o jardineiro sabe e pode ser. E que ao falar das
flores, ao exibi-las cercadas de palavras, percebe-se, ele está em transe.
Igualmente o especialista em vinhos, que ao explicar os diversos sabores nos
quatro cantos da boca faz seus olhos verterem prazer e embala a quem o ouve com
sua dionisíaca sabedoria.
Feita com amor, até uma
coleção de selos se magnifica. Torna-se mais imponente que uma pirâmide, se a
pirâmide for descrita ou feita por quem não a ama. É assim que pode entrar pela
sala alguém e servir um cafezinho, mas sendo aquele o cafezinho onde ela põe
sua alma, ela se torna de uma luminosidade invejável.
Cada um tem um momento, um
gesto, um ato em que se individualiza e brilha. Nisto nos parecemos com os
animais e peixes ou quem sabe com as núvens. Animais e peixes têm isto: têm
trejeitos raros e sedutores, cada um segundo sua espécie. Até as núvens, como
eu dizia, têm seu momento de glória.
Uma vez vi um pintor em
plena ação, pintando. Meu Deus! O homem era um incêndio só, uma alucinação. Sua
respiração disparou, ele praticamente bufava, parecia mais um cavalo de
corrida, indômito, indócil. E sua face vibrava, havia uma febre nos seus
gestos. Era uma erupção cromática, um assomo de forma e volumes.
Então é disso que estou
falando. Dessa coisa simples e única, quando o que cada um tem de mais seu
relampeja a olhos vistos. Quando isto se dá, quebra-se a monotonia e o
indivíduo se transcendentaliza.
Pode parecer absurdo, mas já
vi uma secretária transcendentalizar-se ao disparar seus dedos no teclado da
máquina de escrever. Era uma virtuose como só o melhor violinista ou pianista
sabem ser. E as pessoas achavam isto mais sensacional que se ela estivesse
engolindo fogo na esquina.
Isso é o que importa: o
incêndio de cada um. Cada qual deve ter um jeito de deflagrar sua luz
aprisionada. As flores fazem isto sem esforço. Igualmente os pássaros. Todos
têm seu momento de revelação. É aguardar, que o outro alguma hora vai se
manifestar.
(Da obra “Porta de Colégio e
Outras Crônicas”, autoria de Afonso Romano de Sant'Ana, Editora Ática, 1995, páginas 86 a89).