Alguns personagens marcaram
época em nossa cidade e serão sempre lembrados. Na minha infância, recordo-me
da pessoa de “Pai João”, um velho negro de braços fortes e porte
vigoroso, que conhecera os rigores da escravidão e gostava de contar fatos dos
tempos que antecederam sua alforria. Com sua barba comprida e seus cabelos
brancos, ao contar suas estórias, era uma figura simpática e que infundia
respeito.
Acredito que várias cidades
brasileiras, a exemplo de Borda da Mata, conheceram outros negros semelhantes a
“Pai João”, narrando os horrores de uma época em que o ser humano foi
tratado e negociado como “objeto” de propriedade do seu senhor.
Felizmente esse tempo de barbárie e humilhação, que nos envergonha, está
terminado...
Outro personagem, que
coincide com a época áurea do cinema bordamatense, foi “Dito Capitão”.
Papai era dono do prédio do cinema. Iniciou suas atividades ainda na fase do
cinema mudo e, quando os primeiros filmes sonoros começaram, fazia questão de
exibir aqui os melhores daquela época, com ou sem prejuízo financeiro. Os
filmes eram contratados em Cruzeiro; tio Sanico era o responsável pela
projeção, enquanto tio Juquita ficava na bilheteria e mamãe na portaria;
Chatola, mais tarde um dos melhores jogadores de futebol da história do esporte
bordamatense, quando ainda adolescente, foi vendedor de pipocas e amendoim
torrado. Um detalhe: papai, mão aberta que sempre foi, deixava a criançada
entrar na metade da exibição.
Justamente nesse período de
minha meninice, lembro-me da figura popular de “Dito Capitão”, um preto de pequeno porte, com um “papo” saliente e
sempre com um sorriso nos lábios. Era ele famoso, porque embora pequeno
fisicamente, havia comentários de que seria “bem dotado”, particularidade que o tornou objeto da curiosidade
popular.
Sabedores de que era fã de cinema, todos gostavam
também de indagar-lhe a respeito de nomes de filmes, dos quais sabia informar
detalhes, inclusive os nomes de artistas e conversar, principalmente, sobre
capítulos de seriados e fitas estreladas por Tyrone Power, Maria Montez,
Tarzan, Roy Rogers, Ton Tyler e Buck Jones. Aprendera também usar algumas
expressões em inglês como “very god”
e “god night”, que todos gostávamos
de vê-lo pronunciar, em suas respostas. Enfim, na sua simplicidade, “Dito Capitão” foi uma dessas peças
raras e inesquecíveis do folclore bordamatense.
Mais uma personagem fantástica povoa a minha
lembrança. Trata-se de “Dorica”.
Ela viveu muitos anos na casa da família do Sr. Augusto Cobra, casado com a
professora Isaura Megale Cobra, respeitável anciã (recentemente falecida) que
por muitos anos morou na
Rua Herculano Cobra. Ali Dorica trabalhava como doméstica e os ajudou a criar
filhos e netos.
Quem não se lembra dessa mulher, em trajes ciganos,
sempre com saias bem rodadas, adornos chamativos, com o rosto bem pintado,
falante, cantando e dançando em nossas praças ou defronte a Igreja Matriz! ... Era
uma espécie de embaixatriz da alegria, que trazia na face a pureza das almas
inocentes e, em seu sorriso, a simplicidade, a riqueza da bondade e magia que a
todos nós encantava! Dorica é uma dessas figuras que acabam se
transformando em mitos. Uma espécie de anjo bom que Deus nos enviou em
seus desígnios insondáveis, para cumprir – quem sabe – uma grande
missão. Talvez mostrar que a felicidade está nas almas de pessoas simples
como esta personagem, sendo o prêmio merecido dos muitos gestos concretos de
amor, única fonte inesgotável de paz e de alegria...
Um certo dia, minha
querida sobrinha Márcia Érica, filha do caríssimo mano Agenor, que sempre aqui
passava férias em sua primeira infância, sumiu a tarde toda; depois de
exaustiva busca, só foi encontrada, já no cair da noite, na entrada do
cemitério. É que, embevecida, estava acompanhando a Dorica que atraía a
criançada com seu verdadeiro “show”, cantando e dançando com a costumeira graça
e alegria.
Foi então que minha
estimada cunhada Leda, estressada pela preocupação, ao chegar em casa sua filha
Márcia, recebeu-a com boas chineladas, sobrando uma delas para sua sobrinha,
Regina, que, inseparável da sua amiga, fora a primeira a entrar no quarto.
Márcia Érica, confirmando a ocorrência, em telefonema recente, contou-me que,
curiosa, de fato acompanhara Dorica, naquela tarde. Então, num verdadeiro
ritual, Dorica colhia flores no jardim da praça, que depois levava ao
cemitério, colocando-as em diversos túmulos, onde rezava em voz alta, com
Márcia Érica e outras crianças.
Outro personagem popular que conheci, foi “Zé Janeiro”, cujo nome verdadeiro
desconheço. O mês de janeiro, época de chuvas fartas, é o mês mais propício
para a colheita de abobrinhas, que nele nascem com abundância. Sabendo que
ficava bravo, ao ser chamado pelo apelido, a criançada, por tabela, mexia com o
Zé, perguntando-lhe qual o mês das abobrinhas. E como, após a pergunta, sua
reação imediata era lançar mão de um porrete, logo saíam correndo em desabalada
carreira, enquanto o pobre homem, indignado, tentava alcançá-los, proferindo os
mais variados palavrões...
Recordo-me ainda do personagem “Orestes”, famoso pela resposta
“cinco” a tudo que lhe era indagado.
Quantos anos você tem, Orestes? – Cinco, respondia ele, embora com boa idade nas
costas.
Quantos irmãos? –
Cinco.
Quantos pares de sapato? – Cinco.
Quantas casas? – Cinco.
Enfim, “cinco” era a resposta que sempre trazia nos
lábios para qualquer pergunta. Somente mudava, quando lhe indagavam:
Com quem você vai se casar?
- Com a Nice do Amadeu, prontamente respondia. Nice
era a jovem mais linda e formosa da cidade, o que prova que de bobo não tinha
nada.
Orestes era pobre e morava no bairro do buracão, atual Bairro
São Francisco, assim batizado pelo governo do Dr. Vavá, onde se localiza também
a Vila Vicentina. Era lambão e andava sujo, com as unhas compridas. Corria na
cidade um boato de que se alimentava com “merda
de galinha” e virava lobisomem nas noites de lua cheia. Por isso, a
criançada morria de medo dele, como se isso fosse realmente verdade.
Outro personagem
folclórico foi um roceiro, homem trabalhador e honesto, vendedor de laranjas,
que costumava vir até a cidade com seus jacás sobre o lombo da mula. De idade
avançada, ele era completamente surdo e, por essa razão, suas respostas não
tinham nexo algum com as perguntas que lhe eram feitas. Daí a imaginação
popular inventou um dos seus possíveis diálogos com um freguês que lhe comprava
laranjas:
“Como vai sua mulher?”,
disse-lhe o freguês.
“-Pode chupar que
é boa; se não gostar não precisa pagar nada...”, respondeu o vendedor,
convencido de que seu produto era de ótima qualidade.
Finalmente, o personagem Joaquim “Pacuera”, que exercia a
profissão de barbeiro para a gente mais simples da cidade, ficou célebre pela
excelência do português com que tabelou os preços de seu estabelecimento:
- Cortume e penteio
de cabelo - 10 mil reis;
- Façume de barba –
05 mil reis.
“Fregueis, fassa o favor de não pedir fiado”.
(Extraído de meu livro "Farpas do Coração", Edição APMP, ano 2009, páginas 56 a 60).
Gustavo Dantas de Melo
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